Tuesday, December 14, 2010

O BEIJÓDROMO

Uma década e meia depois, a UnB inaugura o "beijódromo" imaginado por Darcy Ribeiro. Por Cynara Menezes

Uma década e meia depois, a UnB inaugura o “beijódromo” imaginado por Darcy Ribeiro



Nuvens claras cobriam o céu de Brasília na quarta-feira 8. Fazia calor, mas, graças às paredes laterais móveis, uma brisa fresca circulava pelo auditório. Do lado de fora, nos bancos ao redor do espelho-d’água que circunda o prédio, a temperatura estava parti-cularmente agradável por causa dos chafarizes instalados no fosso, cujos borrifos são aproveitados para refrescar o interior do Memorial Darcy Ribeiro. Enfim, tudo parecia conspirar a favor de uma tarde propícia para beijos à farta, mas não se viam muitos pombinhos arrulhando por ali.



O beijódromo sonhado pelo antropólogo e ex-senador Darcy Ribeiro em 1996, um ano antes de sua morte, foi finalmente inaugurado por Lula na segunda-feira 6. Acompanhado do colega uruguaio José Mujica, amigo de Darcy, e do ministro da Cultura, Juca Ferreira, o presidente enfrentou o protesto de um grupo de estudantes contra o reitor da universidade, para quem o memorial não era tão urgente quanto outras obras.







Apressada em uma semana para tornar possível a vinda de Mujica, que transmitiu o desejo de estar presente à cerimônia, a obra podia até não ser urgente, mas repara uma dívida antiga da UnB com Darcy, seu criador, ao lado do educador Anísio Teixeira. O antropólogo idealizara uma universidade-modelo e trouxera para a capital do País, em 1961, mais de 200 educadores, cujo talento pretendia utilizar para, em -suas palavras, “plantar a sabedoria humana”. Veio o golpe militar e a universidade teve seu destino desvirtuado, mas o acadêmico, que partiu para o exílio, nunca deixaria de considerar a UnB como sua “filha”.



No memorial, há uma exposição permanente sobre a obra e a vida de Darcy, com objetos indígenas e de uso pessoal, folhetos de sua carreira política, fotos e documentos, como uma carta que escreveu ao economista Celso Furtado em 1969. Exilado na Venezuela, Darcy se encontrava em apuros com a Universidade de Caracas, também invadida por militares, e enviava a Furtado seu currículo, em busca de emprego. Ao lado da exposição, no primeiro andar, a biblioteca tem cerca de 30 mil volumes, do acervo dele e de sua primeira mulher, a também antropóloga Berta G. Ribeiro.



Mas o xodó do complexo é mesmo o beijódromo propriamente dito: o auditório do memorial, onde acontecerão shows- e palestras a partir de fevereiro. Na ideia que Darcy, já enfraquecido pelo câncer, transmitiu ao arquiteto João Filgueiras, o Lelé, um dos talentos que ele trouxe para a universidade na época de sua criação, “trata-se de um amplo palco ao ar livre para serestas e leitura de teatro e poe-sia, defronte de uma arquibancada para 200 olharem a lua cheia e se acariciarem. Eu, lá de longe, estarei vendo, feliz”.



A única mudança no projeto feita por Lelé agora foi a colocação de uma cobertura no beijódromo, para proteção dos equipamentos. O arquiteto concebeu um espaço que “lembra um pouco um disco voador ou uma mistura da maloca dos xavantes com a dos kamayanás”, que Darcy tanto admirava. Como os demais projetos de Lelé, a exemplo dos hospitais da rede Sarah, o memorial possui muita luz natural e outras características que o fazem ecologicamente correto. Não há ar condicionado: um exaustor situado no topo da “maloca” puxa o ar quente para cima, ao mesmo tempo que o prédio é todo resfriado pelo aproveitamento da água borrifada pelos chafarizes.







No espelho-d’água, abastecido pela chuva, menos nos meses de seca, foram colocados 10 mil peixes “barrigudinhos”, comedores de larvas de mosquitos. “Usamos esses peixinhos no Hospital Sarah do Rio e deu supercerto contra o mosquito da dengue”, conta a filha do arquiteto e sua parceira na obra, Adriana Filgueiras. Todos os móveis do memorial, assim como o elevador panorâmico, foram desenhados por Lelé e fabricados ali mesmo. No centro do prédio, há um jardim com plantas de flores vermelhas, para combinar com as finalidades românticas imaginadas por Darcy. Ele costumava dizer que criou o Sambódromo, no Rio, sem saber sambar, mas que queria um “beijódromo” na sede da fundação porque, gabava-se, beijar era o seu forte. “Eu gosto é de beijar e namorar”, afirmava.



Segundo a diretora do memorial, Laura Murta, embora o beijódromo seja só o auditório, todos os espaços do lugar são beijáveis. “A ideia é que o prédio seja efetivamente e afetivamente utilizado.” Nenhum tipo de beijo, promete, será proibido. “O memorial tem de ser a síntese da universidade tal como foi imaginada por Darcy: ninguém podia ser premiado ou punido por suas ideias e atos”, confirmou o presidente da Fundação Darcy Ribeiro, Paulo Ribeiro, sobrinho do antropólogo.







Ou seja, está liberado o beijo entre meninos e meninas, e também vale homem com homem e mulher com mulher. Aliás,- só para confirmar, o ósculo de inauguração do beijódromo foi dado por Paulo em ninguém menos que o presidente Lula. “Na testa”, ele esclarece. Tanta modernidade agradou ao casal de “ficantes” Rodrigo Oliveira, 21 anos, estudante de Relações Internacionais, e Kaio Maia, 22, de Letras. “O lado simbólico do beijódromo é muito importante. Num momento em que os gays estão ouvindo tanto ‘aqui não é lugar para isso’, aparece um local feito justamente para isso”, opinou Rodrigo – que ficou tímido e evitou dar um beijo em Kaio.



O que traz à cabeça a pergunta: será que um lugar feito para beijar não inibe os beijoqueiros? Como se o beijo, em lugar de desfrute, se transformasse em obrigação? O estudante de doutorado em Direito Humberto Góes, 32 anos, desenvolve sua tese: “Acho que não. Ao contrário, o local é em tudo propício ao beijo e às manifestações amorosas. Observe que as cadeiras não têm braços. Sinal de que as pessoas, até por não terem onde se apoiar, vão preferir ficar abraçadinhas”. Cada beijo, beijinho e beijoca no local terá um patrono: Darcy Ribeiro

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