Saturday, December 30, 2006

AS ÁGUAS QUE NOS MOVEM



As águas da lagoa movem-se lentamente para lá e para cá como se fosse um jogo sincronizado daqueles operados pelos mecanismos de um computador.
Sem o grego Tales na distante Mileto, no século VI a.C. não entenderíamos a imprescindível e vital importância das águas. Também, sem os seus compatriotas seria impossível discutir as idéias que nos movem e o indizível movimento do mundo.
Há os que passam sem ver, há os que vêem e não percebem, há os que sugam a água da lagoa para irrigar os arrozais exportáveis e permutá-los na mais alta cotação do mercado mundial.
Conta-se que Tales vivia distraído contemplando o céu apesar de ser um homem bom de cálculo já que calculou com precisão o eclipse que aconteceu séculos depois dele. Apesar disso, tropeçou numa pedra e foi motivo de risos pelos transeuntes. Os que riram dele viam as pedras e não as percebiam, pouco se importavam com as águas, com o movimento. Perceber é mais que ver. Perceber é aguçar os sentidos e percorrer o âmago da alma e os labirintos da razão.
Foi Tales quem disse que tudo era úmido e, nós humanos somos tal e quais as águas da lagoa. Mas, como transeuntes vêem e não percebem que o úmido se esgota a cada dia, que o ar que respiramos está quase estático com o efeito estufa. Afinal, o que é que nos temos ver com isso e o para que esse Tales foi buscar o arché.
Dedico aos percebem o mundo e cuidam dele.

O mar azul a nossa espera

O mar de Ponta Negra é lindo, apesar dos maltratos. Janeiro de 2005

Tuesday, December 26, 2006

POR ONDE ANDARÁS CATARINO

Catarino era aluno da turma 51, morava no “fundão” da vila, onde habitavam os desgarrados da sorte, os biscateiros, os que estavam à procura de emprego ou aqueles que cansaram de procurar.
Assim como hoje, nos idos da década de 70, emprego era uma mercadoria rara, cobiçada ao alcance de poucos. Era a época do “milagre brasileiro”, do “ame ou deixe-o”, “do país que vai pra frente”. Os jornais não falavam de greve, e nós, professores, só utilizávamos a sineta para anunciar o recreio.
Catarino era chamado assim por ter vindo do vizinho estado de Santa Catarina, seu nome verdadeiro era Luis, tinha um número no caderno de chamada e na ficha de matrícula. Os “números” e as “fichas” eram muitos úteis naquela época.
A diretora da escola, guardiã dos “números” e das “fichas” amava a hierarquia e o discurso das autoridades. Nas datas festivas discursava em cima de um banquinho, improvisando um palanque e de onde vislumbrava a maioria silenciosa de alunos e professores. Concluía sempre o discurso exaltando a Revolução de 64 que pôs fim, para sempre, ao clima de anarquia reinante no país. O segundo escalão era formado pela supervisora, além da predileção pelos “números” e pela “fichas”, supervisionava as atividades dos professores intervindo sempre que algo fugisse à normalidade. Tinha também a orientadora educacional, zelosa de seus afazeres entrevistava constantemente os alunos, respaldada pelas fichas, orientava sempre no caminho do patriotismo.
Tudo poderia ir muito bem, dentro da conformidade, se na turma 51, não existisse aquele migrante chamado Catarino, que perguntava muito, era curioso demais e gostava de discursar nos recreios. Leitor da Bíblia, sabia de cor o seu conteúdo, dava vida aos textos, aos salmos. Virou atração nos recreios. Subia no banquinho, não era o mesmo da diretora, naturalmente. No primeiro dia ninguém ligou, mas aos poucos ganhou notoriedade, virou atração, era efusivamente aplaudido pela massa. Sua fama de orador ultrapassou os muros da escola. Chamavam-no de “futuro vereador”.
A diretora não gostou. A primeira tentativa foi terminar com o recreio. Não pôde, foi advertida pelas autoridades. Logo ela, guardiã da ordem, não poderia contrariar a lei. O recreio estava dentro da lei. Chamou o segundo escalão, consultou as “fichas”, examinou os “números”, pediu o exemplar da Bíblia emprestado. Catarino passou por várias entrevistas, mas ninguém conseguiu dissuadi-lo dos discursos. Sem a Bíblia passou a declamar poesias: Castro Alves, Olavo Bilac, e o seu público aumentava a cada dia. Resolveram devolver a Bíblia. A religião era um dos esteios da Pátria!A Bíblia era melhor que a poesia, afinal a curiosidade de Catarino poderia chegar a um Ferreira Gullar ou a um Thiago de Mello, “poetas subversivos”.
Chegou o final do ano, avaliações, a entrega de boletim, a rematrícula. Consultadas as fichas e os números, não havia lugar para ele. Os professores que não concordassem com a decisão tinham a liberdade de sair da escola. Afinal a Revolução assegurava a liberdade de amar ou deixar. Deixei a escola com outros professores, naquele dezembro mormacento. Nunca mais vi Catarino. Dizem que conseguiu terminar o segundo grau em outra escola, mas que continuou fazendo discursos. Os que ficaram na escola dizem que a diretora voltou a discursar até o dia em que se aposentou. Não tinha o público de Catarino, nem palmas, nem vaias, mas tinha o palanque improvisado.
Neste mês do trabalho, entre lembranças das vivências, eu recordei de ti, não sei se conseguistes realizar o teu sonho de pastor, vereador ou locou. Mas conseguiste a proeza naquele difícil ano do final da década de 70, de balançar o palanque da diretora, o coração e s certezas de teus professores,
Catarino, onde andarás?
Primeiro lugar no Concurso Histórias de Trabalho, 1994. Foi a primeira vez que eu ganhei um concurso literário.

Sunday, December 17, 2006

LILI E O BAU DAS QUINQUILHARIAS

Ironicamente, o mundo de Lili tinha se resumido, nos últimos anos, à sagrada missão que lhe legaram seus antepassados. Esposa, mãe e dona de casa dedicada em tempo integral. Aos trinta anos, ainda solteira, resolveu deixar de lado as “loucuras” da juventude quando lhe apresentaram o melhor partido da cidade: alto, loiro, com promissora carreira no Banco do Brasil.
Não pensou muito, colocou no baú do esquecimento os discos dos Beatles, os livros da Simone e do Sartre, as fotos das viagens ao Rio de Janeiro, das passeatas contra guerra do Vietnã, juntamente com os projetos de independência econômica, todas quinquilharias supérfluas para uma moça direita e casadoira.
Imersa no papel que o destino lhe confiara, cumpriu passo a passo as regras e os ditames, entre eles viver à sombra de um grande homem. O tempo passou depressa demais, sem que Lili lembrasse do baú das quinquilharias. Afinal, não precisava de nada, o futuro garantido,invejável situação financeira, diferente das amigas que tinham que ir à luta pela sobrevivência e sustento da casa.
Quando o marido morreu, depois de longa enfermidade, ela também cumpriu os procedimentos de praxe: a missa de sétimo dia, as visitas de pêsames, o luto e tudo mais que cabe às viúvas honestas. Por recomendação médica, ela resolveu fazer uma pequena viagem e visitar os parentes na capital.
Afinal, fora ali que ela vivera boa parte da sua juventude. Durante a sua estada, os amigos e parentes proporcionaram passeios, jantares, encontros aprazíveis. Porém, na véspera da viagem de volta, Lili foi sozinha à Feira do Livro em busca de novos ares e de obras de auto-ajuda, dietas e artesanato. Estava um pouco tonta com os alaridos dos visitantes, quando vislumbrou entre os livreiros um semblante conhecido, apesar dos cabelos grisalhos. Não teve dúvida era José, personagem de um tórrido romance do passado, trancafiado na memória. Na banca de José não vendiam livros de dietas nem de auto-ajuda.O que fazer?
O tempo tinha dissipado muita coisa, mas não conseguiu lhe tirar a argúcia. Num momento de distração de José, ela copiou o telefone e e-mail da banca e foi para casa remexer o baú das quinquilharias.
Afinal, um recadinho à distância, pode reavivar antigos desejos.

O enredo foi sugerido na aula de conto pelo professor Jaime Cimenti.



Sunday, December 10, 2006

A rotina inexplicável

Nunca consegui uma explicação plausível para aquela viagem de fim de semana prolongado.Eu, que me vangloriava de ser diferente das demais pessoas curtindo o feriadão, numa corrida frenética para a praia.
Mas, a verdade é que eu me sentia o tipo “Maria vai com as outras”. A casa até que era aprazível, o problema estava dentro de mim pois não achava graça em nada. Então, sai para curtir o sol na esperança de aquecer minha alma inquieta. Caminhei vagarosamente pelas mesmas trilhas, tal como uma peregrina que cumpre resignada os passos dos seus mártires. Visitei os lugares de sempre, cumprimentei as mesmas pessoas e constatei o óbvio: não há nada desconhecido debaixo do sol.
Escondida atrás da máscara de durona, estava ali uma mulher como as outras, uma das muitas Marias que cumprem a rotina onde quer que estejam, na praia, na cidade, no campo, com as suas dores e amores. Foi assim que as minhas tormentas internas identificaram-se com os trovões e os relâmpagos e a chuva intensa que veio logo após. Restava-me apenas esperar que a chuva amainasse para retornar para casa e retomar a rotina do feriadão chuvoso.
Como tudo passa, a chuva passou, retornei ao caminho da casa. A chuva deixou as marcas de sempre. Contornei os lamaçais e cheguei ilesa, felizmente. Ao colocar a chave na porta percebi algo diferente, para além da rotina. Havia alguém estranho dentro de casa! Pensei em recuar, chamar a polícia, pedir socorro. Ainda bem que não tomei nenhuma das providências. Estava ali o inusitado, o vinha alterar definitivamente a malfadada rotina. Não eram os larápios contumazes que rondam as casas desertas. E sim um ex-amor que havia esquecido de devolver a chave da porta da casa. Um ex-amor tão delicado a gente nunca esquece.
E, assim, até o próximo domingo a rotina tinha ido para o ralo da pia.
Observação: o enredo foi sugerido na Oficina de Conto do Jaime Cimenti.