A ESCANDALOSA NORMALISTA
Pagú nasce Patrícia Rehder Galvão no dia 09 de junho de 1910 em São João da Boa Vista, São Paulo, terceira filha de Adélia Rehder Galvão e Thiers Galvão de França. Três anos depois a família se muda para São Paulo, cidade que passava, desde o fim do século XIX, por profundas transformações. Há um surto de expansão econômica motivado sobretudo pelas lavouras cafeeiras do interior do estado e pela proliferação de indústrias. É nesta cidade que crescia vertiginosa e desordenadamente que Patrícia passa a freqüentar a escola. De saia azul, blusa branca, cabelos soltos e batom escuro, ela chama a atenção dos rapazes da Faculdade de Direito ao passar diariamente pelo largo de São Francisco.
“Era uma menina forte e bonita, que andava sempre muito extravagantemente maquiada, com uma maquiagem amarelo-escura, meio cor de queijo palmira, e pintava os lábios de quase roxo, tinha um cabelo comprido, assim pelos ombros, e andava com o cabelo sempre desgrenhado e com grandes argolas na orelha. Passava sempre lá pela faculdade, de uniforme de normalista. E os estudantes buliam muito com ela, diziam muita gracinha pra ela (...) faziam muita piada e ela respondia à altura, porque não tinha papas na língua para responder”, descreve um estudante de direito da época.
Alfredo Mesquita, em texto de 1971, falou sobre a amiga: “Pagú fora aluna célebre da ‘Escola Normal da Praça’ (...) Corriam em São Paulo, cidade provinciana, histórias malucas a seu respeito: fugas, pulando janelas e muros da escola, cabelos cortados e eriçados, blusas transparentes de decotes arrojados, cigarros fumados em plena rua. Escândalos, para a época”.
A “escandalosa” Pagú presencia também, ainda que muito jovem – tinha à época 12 anos – a Semana de Arte Moderna de 1922 e o início do movimento modernista, do qual mais tarde iria participar. Em 1925, com quinze anos, passa colaborar no Brás Jornal, assinando Patsy.
Além da Escola Normal, Zazá, como era conhecida pelos familiares, freqüenta com a irmã Sidéria o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde lecionava Mário de Andrade. Numa crônica escrita para o Diário de São Paulo muitos anos depois, a própria Patrícia rememoraria o poeta àquela época:
“Mário de Andrade tinha um riso largo de criança, na minha infância, eu roubando frutas no tabuleiro da casa que tinha perto do Conservatório, na avenida São João, e nós meninas sem saber que aquele professor comprido e feio, de riso de criança grande, era um poeta, comia amendoim abrindo o clã do jabuti, e ninguém de nós no piano, na sala, na rua, na porta, pressentindo “depois de amanhã o porvir, sim, o porvir...” Nenhuma de nós sabia que o poeta era o poeta, que o professor fosse outra coisa” (“Cor local: Depois de amanhã Mário de Andrade”, Diário de São Paulo, 23/2/47).
O ENVOLVIMENTO COM O GRUPO ANTROPOFÁGICO
Em 1928 Patrícia completa o Curso Normal da Escola da Capital e é neste mesmo ano que entra em contato com o grupo da Antropofagia. Também neste momento ganha o apelido que a acompanharia pela vida toda, ainda que mais tarde já não gostasse de ser chamada assim: Pagú. Foi Raul Bopp quem lhe deu o apelido. Em depoimento a Augusto de Campos, Bopp afirma que Patrícia lhe mostrara alguns poemas e ele sugeriu que ela adotasse esse nome de guerra literário. O poeta pensara que ela se chamava Patrícia Goulart, e compôs o nome juntando as supostas iniciais. Em outubro de 1928, Bopp publica na revista Para Todos..., do Rio, o poema “Coco de Pagú”:
“Pagú tem uns olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-coco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagú eh!
Dói porque é bom de fazer doer (...)”
É o mesmo Bopp quem a introduz no salão da Alameda Barão de Piracicaba, nas reuniões oferecidas por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, o casal “mais admirado e requisitado da sociedade paulistana”, nas palavras de Maria Eugênia Boaventura, biógrafa de Oswald. Ele e Tarsila logo simpatizam com a jovem ousada e excêntrica, que a partir de então passa a freqüentar as reuniões do grupo. Segundo depoimento do arquiteto Flávio de Carvalho, dado em 1964, Pagú “era uma colegial que Tarsila e Oswald resolveram transformar em boneca. Vestiam-na, calçavam-na, penteavam-na, até que se tornasse uma santa flutuando sobre as nuvens”.
O movimento antropofágico, lançado em 1928 com o “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade, era uma radicalização do modernismo de 22. O texto de Oswald foi publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, criada para difundir o movimento. Segundo Maria Eugênia Boaventura, o movimento antropófago representa o extremismo do modernismo, sua forma mais revolucionária. “Ele reproduz e intensifica todos os tipos anteriores de ruptura. Representa uma síntese metafórica da trajetória dos diferentes grupos da experiência moderna no Brasil”.
Após dez números a revista passa por uma reformulação e inicia sua segunda fase, ainda mais radical que a primeira, fazendo com que haja uma cisão no grupo e vários integrantes encerrem sua colaboração, como Mário de Andrade e Alcântara Machado. “A Revista de Antropofagia, em ambas as fases, de vários modos, ridiculariza a ação e o pensamento dos companheiros modernistas que não aderem, afastam-se do grupo, ou ainda, de escritores que se opõem à programática antropofágica.”, esclarece Boaventura.
É nesta “segunda dentição” - como os autores se referiam à nova fase -, iniciada em março de 1929, que Pagú inicia sua colaboração, basicamente com desenhos. Em junho do mesmo ano ela se apresenta numa festa beneficente no Teatro Municipal em que, vestida por Tarsila, declama poemas modernistas, incluindo o “Coco” de Bopp e um poema de sua autoria, presente no “Álbum de Pagú”, de 1929, livro com poemas e desenhos feitos por ela:
“...a minha gata é safada e corriqueira...
arremeda ‘picassol’
trepa na trave do galinheiro e preguiçosamente escancara a
boca e as pernas.
...a minha gata é vampira...
mimo de um italiano velho e apaixonado. general de brigada. dois
metros de altura. pelado e sentimental. atavismo.
o luxo da minha gata é o rabo
ela pensa que é serpente...”
A partir dessa apresentação, Pagú torna-se conhecida para além dos artistas e intelectuais que freqüentavam a Alameda Barão de Piracicaba. A relação dela com Tarsila e Oswald era cada vez mais estreita – especialmente com este último, com quem inicia um romance neste mesmo ano de 1929. Oswald descreveria de forma bem humorada o abalo na relação com Tarsila:
“Se o lar de Tarsila
vacila
é por causa
do angu
de Pagú”
Em 20 de julho é inaugurada no Rio a primeira exposição individual de Tarsila no Brasil. Uma comitiva de “antropófagos” formada entre outros por Pagú, Anita Malfatti, o pintor Waldemar Belisário e Oswald acompanha a pintora à cidade. Em reportagem à revista Para Todos... (“Na exposição de Tarsila”), Clóvis de Gusmão publica uma breve entrevista de Pagú:
“Pagú veio ao Rio com Tarsila (...) a gente quando vê Pagú repete pra dentro aquilo que o Bopp escreveu: - dói – porque é bom de fazer doer!
- Que é que você pensa, Pagú, da antropofagia?
- Eu não penso: eu gosto.
- Tem algum livro a publicar?
- Tenho: a não publicar: os “60 poemas censurados” que eu dediquei ao Dr. Fenolino Amado, diretor da censura cinematográfica. E o Álbum de Pagú – vida paixão e morte – em mãos de Tarsila, que é quem toma conta dele. As ilustrações dos poemas são também feitas por mim.
- Quais as suas admirações?
- Tarsila, Padre Cícero, Lampeão e Oswald. Com Tarsila fico romântica. Dou por ela a última gota do meu sangue. Como artista só admiro a superioridade dela.
- Diga alguns poemas, Pagú.
(Informações: - Pagú é a criatura mais bonita do mundo – depois de Tarsila, diz ela. Olhos verdes. Cabelos castanhos. 18 anos. E uma voz que só mesmo a gente ouvindo).”
É provável que a mesma beleza que encantara o repórter tenha feito com que Oswald deixasse Tarsila para se unir a Pagú. Grávida de Oswald, Pagú casa-se em 28 de setembro com o pintor Waldemar Belisário, como forma de manter as aparências. Mas tudo fora planejado por Oswald com o consentimento do pintor, que devia favores pessoais a ele. Logo após a cerimônia civil, o casal partiu em lua-de-mel para Santos mas, no alto da serra, Waldemar trocou de lugar com Oswald, que os esperava, e voltou para São Paulo. O casamento foi anulado em 5 de fevereiro de 1930.
Em 5 de janeiro de 1930 Pagú e Oswald casam-se em frente ao jazigo da família do escritor, conforme escreve Oswald em O romance da época anarquista ou Livro das horas de Pagú que são minhas, espécie de diário iniciado em maio de 29, provavelmente data do início do romance entre os dois:
“1930, 5 de janeiro. Nesta data, contrataram casamento a jovem amorosa, Patrícia Galvão e o crápula forte, Oswald de Andrade. Foi diante do túmulo do Cemitério da Consolação, à Rua 17, n.º 17, que assumiram o heróico compromisso. Na luta imensa que sustentaram pela vitória da poesia e do estômago, foi grande o passo prenunciador, foi o desafio máximo. Depois se retrataram diante de uma igreja. Cumpriu-se o milagre. Agora, sim, o mundo pode desabar.”
O CASAL QUE NÃO CABE NA SOCIEDADE E A MILITÂNCIA POLÍTICA
Mas o mais novo casal “antropófago” não encontrou as portas da sociedade paulistana abertas. Segundo Flávio de Carvalho, “quando Oswald rompeu com Tarsila, ligando-se a Patrícia Galvão, foi repudiado pela sociedade”. Olívia Guedes Penteado, famosa senhora da elite incentivadora dos jovens modernistas, recusa-se a receber o novo casal. Além disso, a crise de 1929 abalou seriamente a situação financeira de Oswald. Para fugir dos credores ele isolou-se com Pagú na Ilha das Palmas, em Santos. Outro endereço do casal foi a Vila Rafael, uma chácara no hoje bairro de Santo Amaro, onde vivia também Oswald de Andrade Filho, apelidado Nonê.
Em 25 de setembro de 1930 nasce Rudá de Andrade, primeiro filho de Pagú e segundo de Oswald. Segundo Boaventura, nessa época “Oswald vivia irresponsavelmente um sonho. Retalhava sua herança e a do filho, vendendo atabalhoadamente pedaços de terrenos para sobreviver. Fazia pouco caso de dinheiro, pois esperava a revolução iminente que iria socializar tudo. Nas ausências e retiradas estratégicas de Oswald e Pagú, quer para fugirem da polícia, quer para se dedicarem às tarefas políticas, Nonê tomava conta de Rudá”.
Três meses após o nascimento de Rudá, Pagú viaja para Buenos Aires para participar de um festival de poesias. Lá conhece Luís Carlos Prestes e volta entusiasmada com os ideais comunistas. Ao retornar ingressa no Partido Comunista e convence Oswald a filiar-se também. Começa então para ambos um período de intensa militância política, com um estilo de vida oposto ao que haviam se acostumado até então. As festas e reuniões em sociedade cedem lugar à militância e à incerteza. Em março de 1931 fundam o jornal tablóide O Homem do Povo que, segundo seu programa, embora não fosse filiado a nenhum partido apoiaria “a esquerda revolucionária em prol da realização das reformas necessárias”. Pagú escrevia artigos, fazia desenhos, charges e vinhetas, além de assinar a seção “A Mulher do Povo”, em que criticava as “feministas de elite” e as classes dominantes. O jornal durou apenas oito números, sendo impedido de circular pela polícia após a confusão gerada por ataques de Oswald à faculdade de Direito, que foi chamada por ele de “cancro” que minava o estado. O Homem do Povo acabou fechado por determinação do Secretário de Segurança do Estado.
PRISÃO POLÍTICA E PARQUE INDUSTRIAL
Pagú escreve o seu romance Parque Industrial que Oswald de Andrade edita. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a TÁBUA CRONOLÓGICA.
Pagú, que já havia participado das agitações de rua por ocasião da Revolução de 1930, participa de movimentos de operários da construção civil em Santos e em 23 de agosto de 1931 é presa como agitadora num comício de estivadores em greve na cidade. Oswald, na tentativa de ajudá-la, faz-se passar por seu advogado e também é preso. Ao ser libertada, o Partido Comunista, para se eximir de culpa, obriga-a assinar um documento em que se declarava uma “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”.
Em 1932 Pagú e Oswald já não vivem mais juntos. Ela vai para o Rio e instala-se numa Vila Operária, trabalhando como lanterninha num cinema da Cinelândia. Era parte do projeto do Partido fazer com que os intelectuais experimentassem o modo de vida e o trabalho dos operários. Apesar do entusiasmo mostrado pelos dois, a maioria dos companheiros do PC não acreditava nas intenções de Oswald e Pagú, conforme se observa nas memórias de um militante da época: “um desses elementos, podemos dizer perniciosos, era uma moça (poetisa) chamada Pagú, que vivia, às vezes, com Oswald de Andrade. Ambos haviam ingressado no Partido, mas para eles, principalmente para Oswald, tudo aquilo lhes parecia muito divertido. Ser membro do PC, militar ao lado dos operários ‘autênticos’, tramar a derrubada da burguesia e a instauração de uma ‘ditadura do proletariado’, era sumamente divertido e emocionante.” (depoimento de Leôncio Basbaum, 1978)
Em janeiro de 1933 Pagú lança seu primeiro romance, Parque Industrial – romance proletário, com edição financiada por Oswald. A autora esconde-se sob o pseudônimo de Mara Lobo por exigência do Partido Comunista. Esteticamente, Parque Industrial se insere nas experiências modernistas, notadamente com influências de Oswald de Andrade - que havia lançado seu Memórias sentimentais de João Miramar em 1924. É uma narrativa urbana, cujo foco central são os trabalhadores – ou melhor, as trabalhadoras – das indústrias da cidade de São Paulo, vivendo miseravelmente esmagadas pelas classes dominantes. Além de poder ser visto como um documento das ideologias de uma época, Parque Industrial é também um belo exemplo de uma experiência de linguagem.
MOSCOU, UM DESENCANTO
NO BRASIL, PRISÃO E TORTURA
Em dezembro do mesmo ano, Pagú sai em viagem pelo mundo na intenção de estudar e verificar in loco, na Rússia, como estava se executando na prática a ideologia pela qual lutava. Oswald ajuda no custeio da viagem e fica tomando conta de Rudá. Ela atua como correspondente dos jornais Diário da Noite (SP), Diário de Notícias e Correio da Manhã (RJ). Visita os Estados Unidos, Japão e China – onde entrevista Sigmund Freud. Da China parte para Moscou, em maio de 1934, numa viagem de oito dias pelo Transiberiano. A realidade que vê nas ruas da cidade a deixa profundamente decepcionada: “o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um hotel de luxo para os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos. Na rua as crianças mortas de fome: era o regime comunista” (Verdade e Liberdade, 1950).
Sai de Moscou em direção à França, onde se estabelece por um tempo, freqüentando cursos da Université Populaire. Filia-se ao Partido Comunista francês com a identidade falsa de Leonnie, e participa de manifestações ao lado da Front Populaire (união dos partidos de esquerda). É detida três vezes antes de ser presa como militante comunista estrangeira, em julho de 1935. Salva de ser submetida ao Conselho de Guerra ou deportada para Itália ou Alemanha pelo embaixador Souza Dantas, acaba sendo repatriada.
Volta ao Brasil no fim do ano, quando se separa definitivamente de Oswald. Passa a colaborar no jornal A Platéia mas, pouco depois de sua chegada, é presa em razão da Intentona Comunista. Condenada a dois anos de prisão, fica nos presídios Paraíso e Maria Zélia, em São Paulo, mas foge antes de completar a pena. Presa novamente, é condenada a mais dois anos e meio de prisão, que cumpre dessa vez na Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Além das torturas, Pagú sofre perseguições dos próprios correligionários de partido. Há nos seus arquivos uma carta desse período, cheia de desesperança, enviada ao futuro marido Geraldo Ferraz: “(...) Escrevo o retrocesso constatado no dia de hoje. Não consigo viver a vida artificial dos últimos dias em que me dissolvia na vida coletiva da prisão. Onde é que eu ia buscar o entusiasmo senil pelo lúmpen quando a própria lama hoje me decepciona? (...)”
Cumprida a pena, Pagú fica ainda na prisão por mais seis meses, por se recusar a prestar homenagem a Adhemar de Barros, então interventor federal em visita ao presídio. É libertada em julho de 1940, muito doente, pesando 44 quilos. A temporada de quase cinco anos de cárcere deixou marcas profundas na antiga musa antropofágica. Segundo a irmã Sidéria, ela tentou o suicídio logo após sair da prisão.
FORA DA CADEIA, INTENSA ATUAÇÃO JORNALÍSTICA
A saída da prisão marca uma nova fase na vida de Pagú. Ela passa a viver com Geraldo Ferraz, que seria seu companheiro até sua morte. Rompe com o Partido Comunista. Tem o segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, em 1941, e passa a colaborar em diversas publicações como redatora, cronista ou crítica.
Durante toda a década de 1940, Pagú trabalha ativamente na imprensa, muitas vezes exercitando combativamente a crítica literária. Ela reclama da capitulação dos autores que, na vigência do Estado Novo, justificavam sua inércia pela falta de liberdade no país. Conforme nota o poeta Augusto de Campos, nas críticas que escrevia sente-se, apesar do desencanto e decepções, uma disposição de luta pela manutenção do espírito renovador de 22. Entre outros veículos, ela trabalha, nesse período, nos jornais cariocas A Manhã, O Jornal, e nos paulistas A Noite e Diário de São Paulo.
Entre junho e dezembro de 1944, ela colabora como contista na revista Detetive, dirigida por Nelson Rodrigues. Na publicação, de grande popularidade à época, Pagú escrevia contos de suspense sob o pseudônimo de King Shelter. No ano seguinte, lança seu segundo romance, A Famosa Revista, em colaboração com Geraldo Ferraz. Se Parque Industrial fora escrito por uma Pagú militante, crente na iminência da revolução, A Famosa Revista caracteriza-se pela crítica e denúncia dos males do Partido Comunista. Nesse sentido, pode-se dizer que o segundo livro é o oposto do primeiro.
A década de 50 se inicia com uma nova incursão de Pagú na política. Ela concorre a uma vaga na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro, mas não é eleita. Como parte da campanha, publica o panfleto Verdade e Liberdade, editado pelo comitê Pró-Candidatura Patrícia Galvão, em que comenta sua passagem pela prisão, a desilusão com o Partido Comunista e o porquê de sua candidatura:
(...) De degrau em degrau desci a escada das degradações, porque o Partido precisava de quem não tivesse um escrúpulo, de quem não tivesse personalidade, de quem não discutisse. De quem apenas ACEITASSE. Reduziram-me ao trapo que partiu um dia para longe, para o Pacífico, para o Japão e para a China, pois o Partido se cansara de fazer de mim gato e sapato. Não podia mais me empregar em nada: estava ‘pintada’ demais. (...) Em 1935, procurei uma revolução que o Partido preparava e não achei revolução nenhuma. Nos pontos, nas esquinas, nenhuma voz, nenhum gesto. Apenas o fiasco. Mais uma vez, o fiasco (...) E todos nós para a cadeia (...) Outros se mataram. Outros foram mortos. Também passei por essa prova. Também tentaram me esganar em muito boas condições. Agora, saio de um túnel. Tenho várias cicatrizes, mas ESTOU VIVA.”
APAIXONADA PELO TEATRO, QUER SER PATRÍCIA DE NOVO
A década de 1950 marca também uma aproximação cada vez maior com o teatro. A partir de 1952 ela passa a freqüentar a Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD), sob direção de Alfredo Mesquita, que lembra que, nessa época, ela já não era mais a chocante e extravagante Pagú, mas uma arredia e calada Patrícia: “conversávamos longamente, amigavelmente, enquanto havia pouca gente à volta. Mal aumentava a roda e Patrícia – como queria que a chamássemos – calava-se arredia, assustadiça, para logo se esgueirar e sumir. Assim era a famosa, a terrível, a assustadora Pagú”.
Pagú passa a ter aulas com Alfredo Mesquita (“aluna ainda, mas não mais subversiva, agressiva, escandalosa como nos tempos da ‘Praça’. Entusiasta, aplicada, séria, divertida...”), Décio de Almeida Prado, Ziembinsky e outros mestres. Leva para Santos a apresentação de “A Descoberta do Novo Mundo”, de Lope de Vega, realizada pela EAD, iniciando uma série de espetáculos da Escola na cidade. A partir desta época Patrícia exerce importante papel na vida cultural de Santos, liderando a campanha para a construção do Teatro Municipal e formando grupos amadores de teatro, além de fundar a Associação dos Jornalistas Profissionais de Santos. Também criou e presidiu a União do Teatro Amador de Santos, por onde passaram, ainda iniciantes, atores como Aracy Balabanian, José Celso Martinez Correa, Sérgio Mamberti e Plínio Marcos.
Na imprensa dedicou-se às páginas culturais, publicando artigos e páginas especiais sobre escritores, poetas e dramaturgos como Ionesco, Brecht, Fernando Pessoa, Dostoiévsky, Rilke e Pirandello. Também foi responsável por traduções pioneiras de escritores então pouco conhecidos no Brasil: Blaise Cendras, Svevo e Arrabal. Deste último encenou, em estréia mundial, a peça ‘Fando e Lis”, com o Grupo Experimental de Teatro Infantil (GETI).
Esclarecendo sua preferência pelo teatro experimental afirmou: “Preferimos a vanguarda, porque visa ela corrigir os vícios e os hábitos de se assistir teatro normal, teatro repetido, teatro que deixa espectador e atores indiferentes. Preferimos aqueles momentos capazes de sacudir o sono do mundo, como lembrava, certa vez, o velho mestre Sigmund Freud. Pois que o mundo dorme.”
O compositor santista Gilberto Mendes, em suas memórias, afirma que “Pagú tinha um humor, uma perspicácia e finura intelectual especiais. E gostava das pessoas, de ajudar (...) Nesses mais ou menos dez últimos anos de sua vida em Santos, Pagú andava esquecida, quase ninguém falava dela no Brasil, era uma figura anônima pelas ruas da cidade, pelas platéias dos teatros, integrada na vidinha artística da província, animando a gente, escrevendo sobre nós, músicos, atores, diretores (...) Era uma mulher formidável”. Seu prolífico trabalho de crítica nos jornais - polemizando, comprando brigas, combatendo - e seu intenso trabalho com o teatro só são interrompidos com sua morte, provocada por um câncer.
Desejava que seus livros sobre teatro fossem doados para a EAD após sua morte. Alfredo Mesquita recorda-se do pedido da amiga: “lembro-me ainda do dia em que, sabendo-se gravemente doente, disse-me pretender entregar imediatamente a sua biblioteca à Escola. Assustado, não querendo por nada acreditar no que dizia a respeito da saúde, recusei a oferta.” Mas a doença evoluiu e Mesquita foi obrigado a acatar o pedido: “vi-a ainda duas vezes, em casa de parentes, sentada na cama, o tronco ereto, fumando, fumando sempre, os olhos muito pretos, ainda vivos, fixos em mim com aquela expressão de angústia e interrogação dos que vão morrer. Já não podia levantar-se e mal conseguia falar. Das duas vezes, repetiu baixinho: - não se esqueça dos livros, são seus...”.
Em setembro de 1962 viaja a Paris para ser operada. Na véspera, um último texto seu é publicado em A Tribuna - o poema “Nothing”:
“Nada, nada, nada
Nada mais do que nada
(...) Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas
Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava
Um cão rosnava na minha estrada
(...) Abri meu abraço aos amigos de sempre
Poetas compareceram
Alguns escritores
Gente de teatro
Birutas no aeroporto
E nada”
A operação fracassa e ela tenta o suicídio. Volta ao Brasil e em 12 de dezembro de 1962 morre em Santos.
“Deu-se esta semana uma baixa nas fileiras de um agrupamento de raros combatentes. Ausência desde 12 de dezembro de 1962, que pede seu registro do companheiro humilde, que assina estas linhas. Patrícia Galvão morreu neste dia de primavera, nessa quarta-feira, às 16 horas (...) Morreu aqui em Santos, a cidade que mais amava, na casa dos seus, entre a Irmã e a Mãe que a acompanhavam, naquele momento e, felizmente, em poucos minutos, apenas sufocada pelo colapso que a impedia de respirar, pela última palavra que pedia ainda liberdade, ‘desabotoa-me esta gola’”. (Geraldo Ferraz, A Tribuna, 16/12/1962)
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