Catarino era aluno da turma 51, morava no “fundão” da vila, onde habitavam os desgarrados da sorte, os biscateiros, os que estavam à procura de emprego ou aqueles que cansaram de procurar.
Assim como hoje, nos idos da década de 70, emprego era uma mercadoria rara, cobiçada ao alcance de poucos. Era a época do “milagre brasileiro”, do “ame ou deixe-o”, “do país que vai pra frente”. Os jornais não falavam de greve, e nós, professores, só utilizávamos a sineta para anunciar o recreio.
Catarino era chamado assim por ter vindo do vizinho estado de Santa Catarina, seu nome verdadeiro era Luis, tinha um número no caderno de chamada e na ficha de matrícula. Os “números” e as “fichas” eram muitos úteis naquela época.
A diretora da escola, guardiã dos “números” e das “fichas” amava a hierarquia e o discurso das autoridades. Nas datas festivas discursava em cima de um banquinho, improvisando um palanque e de onde vislumbrava a maioria silenciosa de alunos e professores. Concluía sempre o discurso exaltando a Revolução de 64 que pôs fim, para sempre, ao clima de anarquia reinante no país. O segundo escalão era formado pela supervisora, além da predileção pelos “números” e pela “fichas”, supervisionava as atividades dos professores intervindo sempre que algo fugisse à normalidade. Tinha também a orientadora educacional, zelosa de seus afazeres entrevistava constantemente os alunos, respaldada pelas fichas, orientava sempre no caminho do patriotismo.
Tudo poderia ir muito bem, dentro da conformidade, se na turma 51, não existisse aquele migrante chamado Catarino, que perguntava muito, era curioso demais e gostava de discursar nos recreios. Leitor da Bíblia, sabia de cor o seu conteúdo, dava vida aos textos, aos salmos. Virou atração nos recreios. Subia no banquinho, não era o mesmo da diretora, naturalmente. No primeiro dia ninguém ligou, mas aos poucos ganhou notoriedade, virou atração, era efusivamente aplaudido pela massa. Sua fama de orador ultrapassou os muros da escola. Chamavam-no de “futuro vereador”.
A diretora não gostou. A primeira tentativa foi terminar com o recreio. Não pôde, foi advertida pelas autoridades. Logo ela, guardiã da ordem, não poderia contrariar a lei. O recreio estava dentro da lei. Chamou o segundo escalão, consultou as “fichas”, examinou os “números”, pediu o exemplar da Bíblia emprestado. Catarino passou por várias entrevistas, mas ninguém conseguiu dissuadi-lo dos discursos. Sem a Bíblia passou a declamar poesias: Castro Alves, Olavo Bilac, e o seu público aumentava a cada dia. Resolveram devolver a Bíblia. A religião era um dos esteios da Pátria!A Bíblia era melhor que a poesia, afinal a curiosidade de Catarino poderia chegar a um Ferreira Gullar ou a um Thiago de Mello, “poetas subversivos”.
Chegou o final do ano, avaliações, a entrega de boletim, a rematrícula. Consultadas as fichas e os números, não havia lugar para ele. Os professores que não concordassem com a decisão tinham a liberdade de sair da escola. Afinal a Revolução assegurava a liberdade de amar ou deixar. Deixei a escola com outros professores, naquele dezembro mormacento. Nunca mais vi Catarino. Dizem que conseguiu terminar o segundo grau em outra escola, mas que continuou fazendo discursos. Os que ficaram na escola dizem que a diretora voltou a discursar até o dia em que se aposentou. Não tinha o público de Catarino, nem palmas, nem vaias, mas tinha o palanque improvisado.
Neste mês do trabalho, entre lembranças das vivências, eu recordei de ti, não sei se conseguistes realizar o teu sonho de pastor, vereador ou locou. Mas conseguiste a proeza naquele difícil ano do final da década de 70, de balançar o palanque da diretora, o coração e s certezas de teus professores,
Catarino, onde andarás?
Primeiro lugar no Concurso Histórias de Trabalho, 1994. Foi a primeira vez que eu ganhei um concurso literário.
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