Sunday, December 17, 2006

LILI E O BAU DAS QUINQUILHARIAS

Ironicamente, o mundo de Lili tinha se resumido, nos últimos anos, à sagrada missão que lhe legaram seus antepassados. Esposa, mãe e dona de casa dedicada em tempo integral. Aos trinta anos, ainda solteira, resolveu deixar de lado as “loucuras” da juventude quando lhe apresentaram o melhor partido da cidade: alto, loiro, com promissora carreira no Banco do Brasil.
Não pensou muito, colocou no baú do esquecimento os discos dos Beatles, os livros da Simone e do Sartre, as fotos das viagens ao Rio de Janeiro, das passeatas contra guerra do Vietnã, juntamente com os projetos de independência econômica, todas quinquilharias supérfluas para uma moça direita e casadoira.
Imersa no papel que o destino lhe confiara, cumpriu passo a passo as regras e os ditames, entre eles viver à sombra de um grande homem. O tempo passou depressa demais, sem que Lili lembrasse do baú das quinquilharias. Afinal, não precisava de nada, o futuro garantido,invejável situação financeira, diferente das amigas que tinham que ir à luta pela sobrevivência e sustento da casa.
Quando o marido morreu, depois de longa enfermidade, ela também cumpriu os procedimentos de praxe: a missa de sétimo dia, as visitas de pêsames, o luto e tudo mais que cabe às viúvas honestas. Por recomendação médica, ela resolveu fazer uma pequena viagem e visitar os parentes na capital.
Afinal, fora ali que ela vivera boa parte da sua juventude. Durante a sua estada, os amigos e parentes proporcionaram passeios, jantares, encontros aprazíveis. Porém, na véspera da viagem de volta, Lili foi sozinha à Feira do Livro em busca de novos ares e de obras de auto-ajuda, dietas e artesanato. Estava um pouco tonta com os alaridos dos visitantes, quando vislumbrou entre os livreiros um semblante conhecido, apesar dos cabelos grisalhos. Não teve dúvida era José, personagem de um tórrido romance do passado, trancafiado na memória. Na banca de José não vendiam livros de dietas nem de auto-ajuda.O que fazer?
O tempo tinha dissipado muita coisa, mas não conseguiu lhe tirar a argúcia. Num momento de distração de José, ela copiou o telefone e e-mail da banca e foi para casa remexer o baú das quinquilharias.
Afinal, um recadinho à distância, pode reavivar antigos desejos.

O enredo foi sugerido na aula de conto pelo professor Jaime Cimenti.



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